Bem-aventurada
Rosalie Rendu (1786-1856)
Jeanne Marie Rendu (Irmã Rosalie), filha de Antonio
Rendu e de Marie-Anne Laracine, nasceu em 9 de setembro de 1786, em Confort, lugarejo
de Lancrans, município de Ain, França.
A Venerável Irmã Rosalie Rendu foi o centro de um
movimento de caridade que caracterizou Paris e a França, na primeira metade do
século XIX, quando a assistência pública ainda não existia.
Em 25 de maio de 1802, Irmã Rosalie entrou no
Seminário (noviciado), na Casa Mãe das Filhas da Caridade de São Vicente de
Paulo, em Paris. Ao
sair do Seminário, Irmã Rosalie foi enviada ao bairro Mouffetard, um dos mais
miseráveis de Paris, onde serviu os Pobres durante 53 anos. Aí, dedicou-se como
enfermeira, juiz de paz, catequista das crianças de rua; aí, enfrentou até
mesmo, arriscando sua própria vida, os revolucionários, dizendo: “Aqui não se
mata ninguém!”
Irmã Rosalie era “a boa mãe de todos”, sem distinção
de religião, idéias políticas, condições sociais. Com uma das mãos, recebia dos
ricos e, com a outra, dava aos pobres.
Aos ricos, Irmã Rosalie proporcionava a alegria de
fazer o bem. Com freqüência, via-se na sala de recepção de sua casa, Bispos, Padres,
homens de Estado e da cultura. Entre eles: Donoso Cortes, Embaixador da
Espanha, o Imperador Napoleão III com sua esposa, estudantes de direito, de
medicina, alunos da Politécnica, que vinham pedir informações, recomendar
alguém ou perguntar em que porta bater antes de fazer uma boa obra. Assim
vieram o Bem-aventurado Frederico Ozanam, co-fundador das “Conferências de São Vicente de Paulo”, e o Venerável Jean Léon Le
Prévost, futuro fundador dos Religiosos
de São Vicente de Paulo, que pediam-lhe conselhos para pôr em prática seus
projetos.
Todos os dias, fizesse o tempo que fizesse, Irmã Rosalie
percorria as ruas e ruelas que iam além do Panthéon, atravessando o sul da Montanha Santa Genoveva – rua Mouffetard,
passagem dos Patriarcas, rua de l´Epée de Bois, rua do Pot de Fer. Com o seu
terço na mão, seu pesado cesto no braço, apressava o passo, pois, sabia que a
esperavam!
Como a monja no claustro, Irmã Rosalie caminhava na
direção de Deus: ela Lhe falava desta família em dificuldade, porque o pai
estava desempregado, daquele ancião que corria o risco de morrer sozinho num
casebre: “Jamais faço tão bem a oração, quanto na rua”, dizia ela.
Sobre o túmulo de Irmã Rosalie, no cemitério Montparnasse, há sempre flores colocadas por pessoas
desconhecidas, e um epitáfio menciona: “à
boa Mãe Rosalie, seus amigos reconhecidos, os pobres e os ricos”.
“Jamais faço tão bem
a oração, quanto na rua”, dizia ela.
Sua fé, firme como uma rocha e límpida
como uma fonte, revela-lhe Jesus Cristo em toda circunstância; ela experimenta na
dia-a-dia esta convicção de São Vicente: Dez
vezes, ireis ver o pobre, dez vezes por dia aí encontrareis Deus.... vós ides
em casas pobres, mas, aí, encontrareis a Deus”. Sua vida de oração
é intensa; como o afirma uma Irmã: ela
vivia continuamente na presença de Deus: se
tinha uma missão difícil para cumprir, tínhamos a certeza de vê-la subir à Capela
ou de encontrá-la de joelhos no seu gabinete”.
“Se o amor é um
fogo...”
Responsável por sua Comunidade, Irmã Rosalie recebeu a
missão de acompanhar cada uma de suas Irmãs, apoiá-las, formar as mais jovens,
animar a vida fraterna. Ela o desempenhou com grande cuidado, comunicando-lhes
seu ardor e sua alegria de servir. Para convencer-se disso, basta ler algumas
de suas testemunhas:
Irmã Rosalie tinha a arte de discernir e
de conduzir. Irmã Angélica conta: “Como
eu era a mais jovem e a mais robusta, Irmã Rosalie, encarregou-me do bairro
mais afastado e populoso: tereis o
melhor lote, disse-me: é na Cité Doré, onde se refugia tudo o que há de mais
medíocre em Paris.
Encontrareis muitos bêbados. Caminhai modestamente, com diligência,
sem precipitação. Perguntai a todas as crianças que encontrardes se vão à Escola.
Há muito bem a fazer! Verdadeiramente, é o lugar de uma Filha da Caridade”.
“Humilde
na sua autoridade, Irmã Rosalie nos repreendia com grande delicadeza; sua
fórmula ordinária era esta: “Nosso Senhor vos pediu isso... Não o compreendestes?”
“Era severa sobre a
maneira como recebíamos os pobres: eles são nossos Senhores e nossos mestres.
Pensastes nisso, minha Irmã, quando mandastes embora este pobre, tão
duramente?”
“Se,
na continuação de um empreendimento, nós lhe anunciávamos uma boa solução, ela
nos enviava a comunicá-la às famílias interessadas, para que nós nos
regozijássemos com sua felicidade e nos encorajava a nos cansarmos pelo bem dos
pobres: jamais, minhas Irmãs, faremos bastante por eles!”
“Irmã Rosalie
via Deus em suas companheiras, que Ele escolheu por esposas. Ela as amava
ternamente, como uma verdadeira mãe”... “Quando o tempo estava ruim ou ameaçava
uma tempestade, enquanto estávamos fazendo compras, ela encontrava sempre um
momento para colocar nossos sapatos em cima da chaminé, assegurando-se, ela
mesma, se não estávamos com os pés úmidos e, se nossas roupas tinham secado!”
“Se o amor é um fogo,
o zelo é sua chama!”, dizia São
Vicente. A pequena Comunidade da rua de l´Epée de Bois, sustentada pela oração
e o amor fraterno, estava pronta para enfrentar a grande miséria deste século
atormentado.
“Para restituir ao
homem sua dignidade...”
“O
pobre povo morre de fome e se condena”, dizia São Vicente de Paulo.
Tal era, na França, a situação dos campos,
no século XVII. É uma situação semelhante – talvez pior, a que constatou a
jovem Irmã Rosalie ao chegar ao bairro de Saint Médard, em Paris. Mal alojados, famintos,
explorados, os pobres são entregues à degradação e à revolta.
“O
bairro mais pobre de Paris, aquele aos quais 2/3 da população falta madeira no
inverno, aquele que joga o maior número de crianças enjeitadas nas casas
“Crianças abandonadas”, maior número de doentes no Hôtel Dieu, mais mendigos
nas ruas... mais operários, nas praças, sem trabalho, maior número de presos na
polícia correcional” Escreveu Honoré de Balzac.
“Lutar
contra a miséria para devolver ao homem sua dignidade”, este será o
objetivo de Irmã Rosalie durante 54 anos!
Com sua Comunidade, ela cuida, alimenta,
visita, consola, apazigua, incansavelmente! Dotada de uma viva sensibilidade,
Irmã Rosalie se compadece com todo sofrimento: “Há algo que me sufoca, diz ela,
e que me tira o apetite... é pensar que em muitas famílias falta o pão!”...
E sua intuição feminina lhe sugere o gesto que deve fazer e a solução que
deverá inventar. Para o serviço dos pobres – sejam quais forem - ela ousa
empreender tudo com inteligência e audácia: nada a fará parar, quando se trata
de colocar de pé aquele que sofre.
Irmã Rosalie vivia ao pé letra as
recomendações dos Fundadores:
“Não
devo considerar um pobre camponês pelo seu aspecto exterior, nem segundo o que
transparece de sua capacidade... Mas, virai a medalha, e vereis através das
luzes da fé, que o Filho Deus... nos é representado por estes pobres; na sua
paixão, ele quase não tinha a aparência humana” – São Vicente.
“Devemos
amá-los ternamente e respeitá-los fortemente” - Santa Luísa.
Irmã Rosalie não contesta a ordem
estabelecida, não é a favor da revolta: não é este o seu método. Para lutar
contra a injustiça e a miséria, desperta a consciência daqueles que têm o poder
ou dinheiro; trabalha para instruir as crianças e os jovens pobres e, para
responder às urgências, ela impulsiona à partilha: “organiza a caridade”.
“Há
tantas maneiras de fazer a caridade, o pequeno socorro em dinheiro ou alimento
que damos aos pobres, não pode durar muito tempo; é preciso visar um bem maior
e duradouro. Devemos estudar suas aptidões, seu grau de instrução e procurar
trabalho, ajudá-los a sair da necessidade.” Irmã Rosalie dá provas de uma
grande lucidez. Com alegria, apóia e aconselha seus amigos engajados nas
reformas sociais, porém, por predileção, a serva se une aos pobres, “seus mestres”, no lugar da miséria.
“Quando
o fogo se propaga...”
A correspondência de Irmã Rosalie e os
testemunhos de suas Irmãs revelam sua preocupação com a juventude e seu talento
como educadora. Não há muita distância entre o bairro Mouffetard e o bairro
latino! Algumas vezes, são vistos, no seu gabinete, jovens pertencentes a todas
as Escolas, aspirando todas as carreiras: estudantes de direito e de medicina,
alunos da Escola Normal e da Escola Politécnica, cada qual vem buscar uma “boa
obra” a fazer ou prestar contas de um serviço.
Com ternura e respeito, Irmã Rosalie os
acompanha pessoalmente, tem o cuidado com suas condições de vida, apóia-os,
assegura o vínculo com sua família, e, como boa educadora, pergunta a cada um,
o que pode colocar a serviço dos pobres; a um, seu “bic”; a outro, sua
atividade; àquele, sua palavra; a todos, alguns instantes, para socorrer
alguém. Ela recomenda-lhes a paciência, a indulgência e a delicadeza.
“Amai
os pobres, não os acuseis demais...; lembrai-vos que o pobre é bem mais
sensível às boas maneiras do que aos socorros”.
Os relacionamentos continuam, quando estes
jovens partem para seus estados: as notícias chegam então à rua de l´Epée de
Bois e são comunicadas aos interessados, graças à diligência e à discrição de Irmã Rosalie, que continuava a estimular as
vocações que ela tinha suscitado.
“Para
que aumente a rede de caridade...”
No dia seguinte da Revolução de 1830, a efervescência do
espírito era grande: inquietações, sede de um mundo mais justo, desejo de
mudança na sociedade, engajamento dos católicos. Neste momento, havia na
Sorbonne, um jovem estudioso, querendo insuflar uma vida nova a esta sociedade
doente.
“Um pequeno grupo se reunia numa espécie
de círculo de estudos, chamada Conferência de história”. As reuniões se realizavam na casa do senhor Emmanuel Bailly,
professor de Filosofia e Diretor do jornal “A
tribuna católica”. Entre os habituados deste círculo, encontravam-se Ozanam, Lamache, Letaillandier, Leon Le
Prévost, Lallier... e outros. Um colega lhes lançou, um dia, este desafio: “...
Vós que vos orgulhais de ser católicos, o que fazeis?”
Esta interpelação fez o grupo refletir. Um
deles propôs: “Fundemos uma Conferência
de Caridade”. Esta idéia agradou a
todos; porém, tinham necessidade de um guia. O Senhor e a Senhora Bailly,
conhecendo Irmã Rosalie, enviou-os à rua de l´Epée de Bois. Irmã Rosalie lhes
ensinou a visitar a pobreza, à domicílio. Aprenderam com ela a ver o Senhor nos
pobres. Ao indicar as famílias para visitar, ela lhes dava conselhos sobre a
maneira cristã de abordá-los, respeitá-los, considerá-los como irmãos, ricos em
humanidade.
Fundada
em São Etienne
du Mont, em 23 de abril de 1833,
a Conferência da Caridade se torna, em fevereiro de 1834, a Conferência de São
Vicente de Paulo, que foi escolhido como mestre e modelo. O número de
membros da Conferência aumenta rapidamente. Em 1835, o Senhor Le Prévost propôs duplicá-la, a fim de criar uma
outra em São Sulpice. Houve uma pequena discussão: as opiniões estavam
divididas! A unanimidade só foi conseguida, quando aquele que a propôs, disse
que a idéia vinha de Irmã Rosalie. As Conferências se multiplicaram rapidamente
em Paris e nos Estados... Frederico Ozanam sonhava “unir o mundo numa
rede de caridade”.
“Um
caminho de reconciliação...”
A pequena sala de recepção, da rua de
l´Epée de Bois não se esvaziava nunca! A Comunidade está no centro de uma
imensa rede de entre - ajuda, cada um pode vir pedir ou oferecer. Ricos,
pobres, fracos ou poderosos, Irmã Rosalie conhece a todos; responsável pela Comunidade,
é chamada por “Mãe”, e o é
verdadeiramente, pronta a levar socorro, a cada instante, àqueles que sofrem.
“Pintura”: Casa de Caridade – rua d´Epée de
Bois, onde viveu Irmã Rosalie
Alguns fatos relatados pelos biógrafos
permitem apreciar a retidão, a coragem e a extraordinária liberdade desta
mulher fora do comum.
Ø 27-28-29 de julho de
1830 “Os
três Gloriosos”: o povo está encolerizado! Paris está coberta de barricadas.
Enquanto que à rua de l’Epée de Bois” cuida dos feridos – arruaceiros ou soldados, Irmã Rosalie sai à procura do General de
Montmahaut, um benfeitor dos pobres, tido como desaparecido. Colocando em risco
sua própria vida, passa no meio das barricadas. Ela o descobre gravemente
ferido na praça da Prefeitura (Hotel de Dieu)... Irmã Rosalie o reanima: ele é
salvo!
Ø A justiça, nos
dias seguintes, após uma revolução é, com freqüência muito severa! As pessoas
que se tinham comprometido, durante o confronto, vieram buscar refúgio na casa
de Irmã Rosalie, que as protegeu e facilitou sua fuga. O comandante de Polícia
– M. Gicquel – deu ordem de prender Irmã Rosalie. “Impossível!”, diz o soldado
encarregado da execução. Todo o povo usará as armas! Como nada conseguiu, o Comandante, pessoalmente,
irá prendê-la. Atravessando a multidão, pede para falar com Irmã Rosalie. Mui
amavelmente lhe é solicitado aguardar no pátio: em seguida se estabelece o
diálogo:
- “O que posso fazer para lhe prestar um
serviço? diz ela:
- Senhora, não vim aqui para vos pedir um
serviço, mas, para vos prestar um serviço; sou o Comandante de Polícia e quero
saber como ousastes ir contra a lei?
- Senhor Comandante, eu sou Filha da
Caridade, vou por toda parte, socorrer os infelizes... Se vós estivésseis sendo
perseguido, eu vos socorreria, eu vos prometo!
- Não recomeçai! Respondeu surpreso o Comandante
- Isto eu não vos prometo! “Uma Filha da Caridade de
São Vicente de Paulo não tem direito de faltar à caridade”.
Ø
Fevereiro de 1831: Irmã Rosalie dá um pedaço de pão a um homem idoso;
ele o recusa. “Obrigado, minha Irmã, não
tenho mais necessidade: amanhã, iremos saquear o Arcebispado.” No dia
seguinte, o Arcebispado está em chamas, porém, Dom de Quélen e um grupo de
sacerdotes encontraram refúgio à rua de l´Epée de Bois.
Ø
Por várias vezes, a cólera
aparece! Por toda parte reina o medo, e do medo nasce a desconfiança: começam a
acusar os médicos e os farmacêuticos pelo contágio, atribuído ao ódio que têm
pelo pobre povo e querem massacrá-los. O Doutor Royer-Collar transportava um
doente ao hospital. Fazem-no parar! Ele protesta..., mas, o ódio é cego! Então,
ele grita a esta gente corajosa do bairro Mouffetard: “Sou um dos amigos de Irmã Rosalie!” O ódio termina imediatamente:
deixam-no passar!
Ø
Na Escola, uma criança chora,
porque seu pai foi preso; Irmã Rosalie conhece a família: este homem, operário
honesto, se deixou levar pelos instigadores. O General Cavaignac, que estimava
Irmã Rosalie, vinha algumas vezes à rua de l´Epée de Bois... Neste dia, ela lhe
propõe visitar a Escola. Enquanto que os olhares espantados das crianças se
voltam para esta visita muito bem vestida, com galões dourados, Irmã Rosalie dirige-se à menina: “Minha filha, eis aqui um Senhor que pode,
se quiser, soltar teu papai”.
- Ah, Senhor, devolva
meu papai! Temos muita necessidade dele em casa!”
- “Mas, ele deve ter feito alguma coisa grave!” “O´ não! Mamãe me disse que não.. e, se ele o
fez, não o fará mais, eu vo-lo prometo; oh devolvei meu pai! Eu vos amarei
sempre!”
Quem ficou mais comovido? Alguns dias mais tarde – sem
dúvida, graças à intervenção de Irmã Rosalie – o prisioneiro regressou à
família.
Ø 1848! Novamente o horizonte se carrega de
nuvens! A burguesia quer reinar e o povo
quer viver de outra maneira: não como miserável! E aconteceu a mesma coisa que
em 1830: batalhas nas ruas de toda Paris! Uma terrível barricada foi preparada
no ângulo das ruas: Mouffetard e de l´Epée de Bois. Mas estava tudo muito bem
preparado! Um oficial da Guarda Móvel atravessa a barricada com sua tropa,
porém, todos os seus homens caíram sob a rajada dos manifestantes, ele ficou
sozinho no meio dos revoltados furiosos. Então, ele se precipitou no pequeno
pátio da casa das Irmãs: os fuzis dos manifestantes apontaram para ele: Irmã
Rosalie se interpõe gritando: “Aqui não
se mata!” – “Não! Mas, do lado de fora! Nós o levamos!” – Irmã Rosalie
recusa... Os homens, sedentos por sangue, vão começar a atirar por cima dos
ombros das Irmãs que cercam o condenado. Irmã Rosalie, porém, cai de joelhos: “Em nome de tudo o que eu fiz por vós,
vossas mulheres e filhos, eu vos imploro pela vida deste homem!” As armas,
imediatamente se abaixam... Alguns homens choram. O oficial está salvo! “Quem sois vós, minha Irmã?”, pergunta
ele.
“Nada, Senhor,
sou uma simples Filha da Caridade. Apenas isto!”
Apenas isto!
Mas, verdadeiramente isto!